O auto-engano, tema de tantos debates filosóficos, talvez possa ser considerado uma defesa psíquica para lidarmos com as circunstâncias da vida. Como ponderou Eduardo Giannetti em seu livro Auto-engano*, sem isso, nossa vida perderia parte do encanto, seria excessivamente dolorosa.
Fernando Pessoa, em Autopsicografia, nos enleva com a beleza do auto-engano:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.**
Estariam as arquitetas e arquitetos praticando uma forma produtiva de auto-engano, quando desenham, fazem croquis para trazer uma obra do mundo das coisas imaginadas para o das coisas construídas, acreditando na existência delas com cada fibra de seu ser, mesmo quando não sabem direito como aquilo vai ser feito? Lembro dos croquis de Jorn Utzon para a Sydney Opera House, e dos desenhos iniciais. Quando ganhou o concurso, não conhecia os meios com os quais de fato materializá-lo.
O auto-engano foi visto como o gesto humano mais íntimo, mais secreto, por Herbert Fingarette, em seu Self-deception*** , que também se inquieta com o que há de paradoxal nessa prática.
Porque no caso de uma pessoa que engana a outra, fica claro que a culpada é a que enganou, inocente a enganada. Mas o que fazer do indivíduo que é ao mesmo tempo enganador e enganado?
Praticar o auto-engano consigo mesma, ou consigo mesmo, é também o que nos leva adiante, a despeito de todas as evidências práticas. Engravidar de propósito no doutorado, uma prática tão habitual (sei por experiência, minha, de minhas orientandas e orientandas de colegas…), é um exemplo. A princípio, ela engana-se achando que vai dar conta de ambos, doutorado e bebê. Quando nasce a menina ou menino, ela percebe o que já sabia no início, que não vai dar conta!
Mas disso decorre a coisa interessante. Ela não vai dar conta no modo de realidade em que estava habituada a viver. Ela, e possivelmente o pai da criança, terão que desenvolver uma outra compreensão da própria realidade, das próprias possibilidades. Uma outra visão de si e sua atuação no mundo. Aí o doutorado sai, e ela termina a pesquisa com o título e a criança. E tudo aconteceu por conta de algo que, no início, possivelmente foi uma forma de auto-engano.
Retomando o caso das arquitetas e arquitetos. Assim como Jorn Utzon, será que Denise Scott Brown, Kazuyo Sejima, Lina Bo Bardi, você e eu sempre sabemos como uma obra vai ficar e como fazê-la? (Tente responder sem usar auto-engano!)
Mas, enfim, estes são apenas alguns caminhos pelos quais pensar o auto-engano, que me serve para dizer o que quero dizer hoje.
No início, e durante o processo de desenvolver um trabalho criativo, frequentemente duvidamos, hesitamos, perdemos a confiança. Diante de uma bagunça de artigos e livros não inteiramente estudados, textos ainda em estado primitivo e insatisfatórios, prazos apertados e tarefas cotidianas intermináveis (renovar o seguro do carro, cadastrar a impressão digital para as novas eleições, comprar o material complementar da escola das crianças, etc., etc., etc….), é razoável imaginar que você não vai terminar nunca! Que, sendo realista, você não tem a menor condição de dar conta deste trabalho, e coisas do tipo.
De fato, pode mesmo ser verdade. Daí só nos resta lembrar, sempre temos o auto-engano!
Foi procurando encarar de modo bem-humorado esta artimanha íntima sua e minha, que pensei no que fazer, e em como fazer, nesta sexta-feira.
Rotina da semana e tarefa do dia abaixo:
Semana 2 / Fase 2: Levantamento de dados
Tarefa do dia:
Como sempre, ajuste seu timer para uns 20 ou 30 minutos para essa tarefa. Usar o timer é importante para você não perder o controle das outras coisas que tem que fazer ao longo do dia!
Sente em uma posição confortável, relaxe e respire fundo por alguns minutos, até sentir mais calma e tranquilidade. Procure pacificar-se internamente só por esse período de 20 ou 30 minutos.
Pense. Se você não tivesse todas as obrigações que você tem, se você tivesse todo o tempo do mundo, todo o dinheiro do mundo, e todos os recursos do mundo para fazer seu trabalho, como ele ficaria?
Qual tamanho ele teria? De que material seria feito? Cores? E seu conteúdo, o que você acha que seria o ideal em termos de conteúdo? Que nível de profundidade você gostaria de atingir? Pense em todos os detalhes, se quiser, anote tudo isso.
Quando voltar de sua meditação, pense um pouco se a visão ideal está tão longe assim da visão possível. Pense se não seria possível fazer ajustes pequenos em sua vida, para trabalhar no sentido de aproximar mais seu trabalho da visão imaginada.
Por hoje é isso, bom fim-de-semana!
Abraços,
Ana Gabriela Godinho Lima
*(Cia das Letras, 2005)
**Autospicografia, de Fernando Pessoa (27/11/1930) – recuperado em: http://www.releituras.com/fpessoa_psicografia.asp
***1a edição, Routledge, 1969. Em 2000 saiu pela Blackwell uma nova edição, adicionada de um capítulo.
Imagens:
Foto: https://media-cdn.tripadvisor.com/media/photo-s/06/7e/de/b0/caption.jpg
Croquis: http://2.bp.blogspot.com/-1vOllUfmU3M/T8Cx3RR_CSI/AAAAAAAAAf0/nEoBL4HBeKc/s1600/Red+Book+sketch+1958.png